As manhãs de Sábado eram as preferidas pelos amantes.
Perfeitas para encontros fortuitos na frente do mundo e nas costas de Deus.
A casa da Santinha estava incrustada na Rua do Comércio, o centro nevrálgico da pequena vila, e as manhãs de Sábado enchiam a calçada de passos e vozes. Correrias de crianças, chamamentos de mães, cumprimentos de ocasião.
Os homens discutiam as últimas notícias do desporto, encostados na ombreira da porta da Tabacaria Moderna e havia magotes de mulheres amontoadas nas mesas da Pastelaria Docemel, a beberricar cafés ao ritmo do último mexerico.
O Dr. Nataniel, o advogado mais proeminente da praça, folheava o Semanário Económico sentado num dos bancos de ferro pintados de verde abeto, que ladeavam a rua para descanso dos passantes. Olhava as notícias sem as ler...As manhãs de Sábado eram as melhores para apreciar o mulherio, pelo rabo do olho. Fixava-se na dança das saias embaladas pelas ancas, fitava os saltos altos qual altar de corpos que imaginava nus e de braços abertos para si. O Dr. Nataniel gostava de sentir o desejo que lhe corroía o corpo todo, a dor aguda que lhe tomava conta das partes intimas e lhe devolvia esperanças vãs de adolescências infames.
A Santinha, entreabria a janela da frente e deixava entrar o buliço da rua. O peito ardia-lhe na antecipação da chegada dele.
Vestiu o robe de chambre de organza rosa velho por cima da pele leitosa, e bebeu o chá, já quase frio, em goles nervosos. Ele raramente se atrasava. Quase 10 horas da manhã, os sons vindos da rua emolduravam a ansiedade da sala. Dois toques. Um, depois o outro, na porta das traseiras da casa. Era ele!
Abriu uma nesga da porta. Apenas o suficiente para o intruso passar. Deixou-se ficar ali atrás da porta, como uma gata no cio, a retorcer-se da ausência dele.
A porta fechou-se. Ele olhou-a, sorriu, e ela entregou-se ali mesmo, sem bons dias, sem mais nada que não fosse a pressa de apagar o incêndio que ameaçava a sua integridade física e que ceifava vidas no interior das pernas.
Na rua do Comércio, a manhã decorria na costumeira cadência de vai vem, e os gemidos que escorriam da janela entreaberta, imiscuíam-se com as vozes dos transeuntes, e coloriam aquela manhã de Setembro de prazenteiros tons solarengos.
O sino na torre da igreja, chamava para a missa das 11, e uma debandada de pardais assustados precipitava-se sobre as acácias da praça.
A Santinha rezava mistérios a duas vozes. Cumpria promessas feitas ao ouvido, pelo chão frio e rijo da casa. Dava graças pelo caudal de vida que lhe varria os sentidos.
Aos poucos, o dia foi escoando sons e passos, deixando no ar apenas a urgência do almoço anunciado em cheiros a comida quente.
O sol de Outono, implacável fazia o casario cair em sombras densas sobre a rua do Comércio, agora abandonada à sua sorte de fim de semana, a solidão.
A sombra silenciou também a casa da Santinha. Lá dentro um manto de suor cobria os dois corpos fartos e quietos.
- Sábado de manhã voltas?
- Sempre minha Santinha.
Na rua ouvia-se agora um passo arrastado, e melancólico. Era o João Francisco, o deficiente que vivia na esquina de baixo com a mãe. Vinha da igreja, onde pedia esmola na saída da missa, e varria com a perna morta os últimos vestígios de gente do meio da rua.
Depois ficou o nada. As casas deitaram-se à sesta, e a Santinha fez juras de manhãs eternas enquanto acenava um adeus saciado.
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Li "Manhãs eternas" mas além disso desviei o colorido dos girassóis.
ResponderEliminar"Ladrão que rouba a ladrão...." Não me ralhe...tá? Mas o meu blog estava muito escuro, hoje!
Serão girassóis?
ResponderEliminarAinda bem que gostou do texto da Carmo...
ResponderEliminarSe entrar no blogue "Mel de Vespas" e o percorrer um pouco, verá uma "contista", com histórias de "encher a alma.
Bem haja por prestigiar as minhas amizades.
Quem tem lucrado com isso acho que tenho sido eu.Mel é sempre mel...as vespas são outro assunto, por vezes complexo...os contos de Carmo "enchem" mesmo os sentimentos.Bjs
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